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Inventário

Izabel Haddad

 

"Quando uma parte vale por si própria, quando um fragmento fala por si mesmo, quando um signo se eleva, pode ser de duas maneiras muito diferentes: ou porque permite adivinhar o todo de onde foi extraído, reconstituir o organismo ou a estátua a que pertence e procurar a outra parte que se lhe adapta, ou, ao contrário, porque não há outra parte que lhe corresponda, nenhuma totalidade a que possa pertencer, nenhuma unidade de onde tenha sido arrancado e à qual possa ser devolvido”. (Gilles Deleuze – Proust e os signos).

 

 

A Exposição Inventário da artista Jeane Terra nos coloca diante de uma poética do fragmento. O detalhe, pedaço, a fatia, o que resta como traço de memória de um acontecimento pode encontrar seu destino transmutando-se em relíquia ou resto, em fragmento ou destroço. 

 

As duas obras, Escombros e A pele tecida, são parte de um rico acervo de elementos de sua história alinhavados pela mão da artista com um fio que nos conduzirá à memória das moradas do corpo; a pele em si, e enfim, a casa. 

 

Desprendendo-se do todo, o escombro e a pele podem ser pensados como objetos duplos, por apontar por um lado para o resgate de um quinhão do tempo do passado, e, por outro, por engendrar em seu despedaçamento um traço daquilo que não se pode resgatar em relação à vivência corporal dos afetos que percorrem por nossas lembranças.

 

As peles de tinta, tecidas camada por camada, esperam pelas texturas da contingência da cor; adornam e recobrem a crueza de um corpo. A costura dos fragmentos de pele remete também ao duplo papel do verbo costurar: porque costurar é cozer, alinhavar pedaços, mas, ao mesmo tempo, é furar, fincar a agulha em superfície lisa, fazer buracos novos que deixam os rastros da linha sobre a borda da pele.

 

Na obra composta pelos escombros, a artista faz uma projeção de uma fotografia colorida da casa onde morou em Belo Horizonte em um dos fragmentos de demolição. Depois de assistir à destruição da edificação, esperou virem abaixo os pedaços esculpidos pelo golpe da gravidade, escolheu uma a uma as partes que queria resgatar do entulho de pedras, macerou ainda mais o pó que restou do corpo da casa e despejou em uma ampulheta que foi delicadamente localizada no ventre de um grande escombro. Enfim, fez correr o pó da memória de sua casa de infância pelo corpo do objeto de medir o tempo em grãos. As ruínas dessa edificação são torrões de cimento, rastros deixados por uma demolição que terá suas ásperas arestas recobertas por delicadas pelúcias, pó de veludo e folhas de ouro. Todo cuidado é dedicado para tratar o que restou, o resto, com materiais tão delicados como se fossem bandagens ou curativos luxuosos que sustentam as fissuras, as cicatrizes das paredes em carne viva.

 

Há nesses dois elementos, escombro e pele, o tema do detalhe, do rastro do todo do qual se desgarram e do afeto que revisita o corpo na nostalgia de retornar à casa. Nesse sentido, convivem nessas composições duas sensações paradoxais: o familiar e o estrangeiro; significantes duplos, pertencentes e não pertencentes ao lugar de onde se deslocaram. Sigmund Freud vai nos dizer que, em muitos sonhos, a saudade de casa está relacionada ao corpo materno, a primeira morada. 

 

No famoso compêndio d’A interpretação dos Sonhos (1900) Freud descreve uma lembrança onírica em que tece uma linda metáfora sobre o psiquismo. Há um sitio de várias civilizações que convivem juntas perpassando tempos diferentes de nossa vida; traços mnémicos, afetos e sensações coexistem, como cidades que se sobrepõem em camadas temporais ocupando fantasmaticamente o mesmo espaço, fazendo exitir épocas díspares que transcendem a cronologia dos eventos. Entre as eras do desejo, há uma permeabilidade da membrana do tempo; algumas vezes, um fragmento do passado se desgarra, por vezes, o afeto se percebe numa cena de dejá vu, por outras, a angústia prenuncia um evento futuro. A memória é feita de camadas, restos, traços, pedaços de lembranças encobridoras, que, juntas, compõem a obra atemporal do desejo inconsciente. Nesse sentido, os objetos erguidos pelos afetos e desejos de Jeane são a revelação desse espaço virtual entre o acontecimento e a tentativa de rememorar o mesmo.

 

A pele e o escombro são fragmentos que dizem respeito a uma parte ausente da totalidade orgânica, não atomizável em si. A forma de existência sensível do fragmento que existe por si mesmo dentro e fora de uma cena rompe com o domínio da imagem pré-estabelecida ou gestáltica. O que a obra de Jeane demonstra é uma tentativa de se nomear, partindo da constatação inelutável de que não há mais uma filiação a que se reportar.

 

Se, por um lado, podemos tentar apreender os traços que nos conduziriam à totalidade da obra, urdindo os fios de nossas memórias antepassadas com os elementos que a artista nos apresenta, por outro lado, há um lugar absolutamente solitário no afeto que sentimos ao observar os pedaços que restaram da casa e a costura das fatias de pele. O lugar de onde Jeane Terra parte para produzir sua obra é perdido desde sempre. Experimentamos o frescor e a densidade de uma saudade sem esperança.

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